O xadrez tributário da reclassificação contábil

Noroara Moreira / Direito Imobiliário, Direito Tributário
23 março, 2021

A Empresa XPTO, constituída em 2010, tem por objeto social a comercialização de produtos agrícolas (mas, para fins deste artigo, poderia ser de cosméticos, de alimentos, de bicicletas). É optante do regime de lucro presumido e, por isso, submete a receita decorrente das respectivas atividades à presunção do lucro (não vamos lucubrar sobre conceitos contábeis e tributários de faturamento x receita). Isso significa dizer que por um prognóstico legislativo estipulado, um percentual dessa receita supõe-se ser lucro e, sobre ele, incidirão as alíquotas de imposto de renda (IRPJ) e de contribuição social sobre o lucro líquido (CSLL).

Por deliberação dos sócios, em 2020 a Empresa XPTO incrementou as operações e decidiu abrir uma nova frente de trabalhos vinculada à área imobiliária (compra e venda de imóveis), com a constituição de nova organização (outro CNPJ). Para esta última atividade, a presunção de lucro seria de 8% da receita bruta, para fins de IR, e 12% para fins de CSLL. Consideradas as alíquotas de cada um (15% e 9%, respectivamente), e já computado o adicional de 10% sobre parcela que exceder R$ 60k por trimestre, bem como as incidências de PIS e de COFINS, a carga tributária seria de aproximadamente 6,73% sobre a receita bruta.

No início das atividades, a XPTO2 aloca alguns bens em ativo circulante (estoque) e outros em imobilizado (aqueles não destinados à venda).

Feitas as análises dessas premissas, e animados com a nova fase, os sócios decidem reclassificar contabilmente um desses imóveis, para que deixasse de compor o ativo imobilizado/permanente e fosse alocado no ativo circulante. Certos de que de essa alteração traria a aplicação das incidências tributárias expostas anteriormente, realizam a venda.

Em período posterior, a Empresa XPTO recebe notificação para que preste esclarecimento sobre a operação. A Receita Federal gostaria de entender se aquela alienação estaria, de fato, abarcada pela presunção de lucro (receita bruta>>atividades operacionais), ou se deveria ser tributada de forma isolada, com a aplicação das bases e das alíquotas “cheias” decorrentes de eventual ganho de capital.

A resposta está presa em uma encruzilhada, a depender de como as tarefas prévias foram executadas.

Conceito de Ativo Imobilizado/Permanente e de Ativo Circulante

Inserido à esquerda do balanço patrimonial, o ativo declara obrigações ou relações contratuais celebradas pela empresa nas quais atue na posição de credora. Pode remeter à atividade operacional da empresa (inerentes ao negócio, como estoque), ou não (ex. imóvel em que a empresa está alocada).

A regra é que se está classificado no circulante, o bem fará parte de operações próprias da empresa no prazo de doze meses; é desse prazo que a análise contábil se ocupa nesse ponto. O imobilizado, por sua vez, é “o item mantido para uso na produção ou no fornecimento de mercadorias ou serviços, para aluguel a outros, ou para fins administrativos”, que se espera usar por mais de um período. (CPC 27)

A depender da destinação, os ativos podem ser reclassificados, uma vez observados os pressupostos contábeis pertinentes. Em exemplo, o imóvel mantido em imobilizado e direcionado à locação pode ser reclassificado para o circulante, caso a empresa pretenda colocá-lo à venda e tenha essa atividade no objeto social.

De que maneira, então, a receita dessa alienação é tributada?

Entendimento da Receita Federal.

Solução de Consulta 251-Cosit (2018)

Em Solução de Consulta 251-Cosit, a Receita Federal declarou que as empresas do ramo imobiliário somente poderiam submeter a receita da venda de imóveis (caso exposto) ao regime de tributação pelo lucro presumido se a classificação desses bens já tivesse sido, desde o início (isso é, na compra), anunciada como circulante.

Dito de outra forma: se um dia o imóvel pertenceu ao ativo imobilizado e, por deliberação estratégica/negocial dos sócios, fosse reclassificado para o circulante, a tributação deveria ocorrer mediante a apuração de ganho de capital (alíquota de 34% aplicada sobre diferença entre o valor de venda e o de custo de aquisição, considerados IRPJ e CSLL), ainda que a atividade desenvolvida pela empresa seja imobiliária.

Esse posicionamento contraria o que a própria RFB já defendera, por ocasião da Solução de Consulta n.º 254/2014: a sociedade que comercializa bens que possam ser classificados tanto no imobilizado quanto no circulante (caso do exemplo deste artigo), estaria autorizada a realizar a reclassificação, desde que observados os parâmetros contábeis; a tributação da receita, por sua vez, não estaria submetida ao ganho de capital.

A atual SC (251-Cosit) diverge também do que vem disposto em regras contábeis, dentre elas a contida no art. 68 A do CPC n.º 27. Segundo ela, por exemplo, “a entidade que, durante as suas atividades operacionais, normalmente vende itens do ativo imobilizado que eram mantidos para aluguel a terceiros deve transferir tais ativos para o estoque pelo seu valor contábil quando os ativos deixam de ser alugados e passam a ser mantidos para venda.”

Causa estranheza (legislativa e negocial), portanto, sustentar que a receita decorrente da venda de bem integrante do ativo circulante deva ser submetida à tributação “via” ganho de capital, em detrimento da aplicação de presunção de lucro, somente pelo fato de o imóvel ter pertencido, um dia, ao imobilizado.

Neste cenário, digno de enxadristas, os julgados do CARF ponderam de forma bastante analítica o contexto em que a operação ocorreu para assentirem, ou não, com a tributação por meio do lucro presumido: a atividade anterior da empresa não era imobiliária e foi alterada apenas para a comercialização de imóvel específico? a venda teria ocorrido antes da alteração contratual e da reclassificação contábil do bem? o imóvel permaneceu por mais de 12 meses em estoque?.

Há luz no fim do túnel?

Não há qualquer vedação legal à reclassificação contábil de ativos (no caso, de imóveis); ao contrário, existem regras específicas que a autorizam, justamente para que permitam a operacionalização de novos negócios.

A apuração da tributação mediante o lucro presumido, contudo, deve ser precedida de algumas tarefas básicas – elas podem evitar (ou minimizar, dar estofo para desbastar) questionamentos ou autuações:

  1. previsão expressa de atividade imobiliária nos atos constitutivos (ou alteração para que a atividade esteja prevista antes de realizada a operação); efetiva realização desse escopo;
  2. observância às regras contábeis de reclassificação – não basta dizer que o preto agora é branco; é preciso demonstrar que o bem está, de fato, disponível para comercialização, e que a organização está envidando esforços para fazer valer a operação;
  3. ainda neste cenário, é preciso garantir que o bem não seja “mantido para uso na produção ou no fornecimento de mercadorias ou serviços, para aluguel a outros, ou para fins administrativos, que se espera usar por mais de um período” (CPC 27).

De qualquer modo, é preciso anotar: em direito tributário, as atuações vedadas estão (devem estar) expressamente previstas em legislação pertinente; a aplicação de presunções, também. O contribuinte (no caso, a empresa XPTO) pode ampliar o objeto social, ou criar novo empreendimento; ainda, está autorizada a realizar operações e a submeter-se às incidências delas decorrentes, sem que isso pressuponha, de antemão, a configuração de qualquer fraude, manobra, sonegação.

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