Por Laila Gerdulli / Direito Societário / 26 junho, 2020

Contratos de repasse de ponto são operações comerciais relativamente comuns – mas, em termos jurídicos, estão longe de serem negócios simples.

Embora, à primeira vista, isso não seja tão evidente para as partes envolvidas, o repasse envolve uma série de direitos e obrigações de terceiros que nem sempre estão na mesa. A consequência disso é que a operação pode ter incontáveis efeitos em diversas áreas (tributário, trabalhista, propriedade intelectual etc.) que muitas vezes não são considerados na negociação.

O ponto mais sensível ao se analisar a operação é, sem dúvidas, o risco de sucessão. Isto é, a possibilidade de as obrigações (dívidas ou quaisquer outras responsabilidades) do vendedor serem “herdadas” pelo comprador.

A mitigação dos riscos do comprador, portanto, depende da transparência na negociação entre as partes e do tipo de contrato escolhido para celebrar o negócio.

Neste artigo apresentaremos os tipos mais comuns – que serão esmiuçados nas publicações seguintes –, suas vantagens e desvantagens.

São, basicamente, três as modalidades mais utilizadas no mercado: compra de CNPJ, Trespasse e Compra e Venda de Ativos.

Compra do CNPJ

A compra de CNPJ nada mais é do que a compra e venda das cotas da empresa que opera o ponto.

Cabe lembrar que, tecnicamente, o CNPJ é apenas o documento de identificação de uma sociedade – ou seja, ele, por si, não pode ser adquirido. Desta forma, nessa modalidade, o comprador as cotas da sociedade identificada por aquele CNPJ e se torna dono da empresa detentora do estabelecimento.

Vantagens

  • A grande vantagem na “compra do CNPJ” é a aquisição de todo o alicerce de funcionamento da empresa: alvarás de funcionamento, estrutura societária, contas bancárias etc.

  • Isso pode ser um grande benefício ao comprador caso a empresa esteja sólida, saudável, e ele prefira continuar a operação desenvolvida pelo vendedor.

  • Além disso, não será necessário, na maioria dos casos[1], firmar novos contratos com fornecedores, locadores etc., se estes tiverem sido feitos em nome da pessoa jurídica.

    [1] Há contratos, por exemplo, que proíbem modificações na composição dos sócios da empresa sem anuência e/ou comunicação da outra parte contratante, e permitem a “rescisão” do contrato quando essa anuência e/ou comunicação não é realizada.

Desvantagens

  • A maior desvantagem nesta modalidade é a aquisição imediata de todo o passivo da empresa, além da possibilidade de responsabilização todo o passivo eventualmente existente em nome da empresa, especialmente com relação a tributos e débitos trabalhistas.

  • Como se sabe, é muito comum – e muitos empresários conhecem bem essa situação –, principalmente na Justiça do Trabalho e em execuções fiscais, que se desconsidere a personalidade jurídica da empresa para que as dívidas dela sejam pagas com o patrimônio dos sócios.

  • Ainda que no contrato de compra das cotas haja previsão estabelecendo que o antigo sócio responda pelas dívidas antigas (o que fortemente se recomenda), esse tipo de cláusula dificilmente é suficiente em processos dessa natureza. O comprador, portanto, pode buscar ser ressarcido, mas a dor de cabeça raramente vai ser evitada.

Considerando esses pontos negativos e positivos, certo é que para que a compra do CNPJ seja mais segura, é necessária uma boa due dilligence – isto é, levantar todos os ativos e passivos (inclusive os potenciais) da empresa, avaliando muito bem os riscos da operação.

Nessa estrutura, ainda, a escolha de um método de valuation (avaliação) adequado da empresa será um ponto chave para a realização de um bom negócio, tanto para o vendedor como para o comprador. Vale lembrar que compõem o estabelecimento nem sempre são de propriedade da empresa.

Trespasse

Trespasse é o nome técnico, previsto na lei brasileira, do contrato de repasse de ponto, também conhecido como contrato de compra e venda de estabelecimento empresarial.

Por estabelecimento empresarial, também no conceito técnico, entende-se o maquinário, o estoque, os móveis, o próprio ponto, o nome e tudo o mais que constitui a empresa que será vendida ao comprador. São os bens chamados “tangíveis” (bens materiais, como o estoque) e “intangíveis” (bens incorpóreos, como a clientela).

Vantagens

  • Tecnicamente, o trespasse constitui o meio mais adequado na transmissão de um ponto, por ser a hipótese legal prevista especificamente para esse tipo de operação.

    Sendo assim, se realizado corretamente em todas as suas etapas e observando as regras previstas na lei, é o que trará maior segurança para que não ocorra a sucessão.

Desvantagens

  • O trespasse é extremamente burocrático de se fazer como manda o figurino, o que o torna mais caro e dificulta muito sua perfeita conclusão, especialmente para operações menores.

Trata-se de modalidade tão mais segura às partes quanto mais burocrática, uma vez que exige o cumprimento de diversas formalidades.

Algumas dessas etapas mais burocráticas são a averbação do contrato na Junta Comercial, a publicação do contrato em Diário Oficial, a notificação dos credores (ou quitação antecipada de todas as dívidas ou, ainda, a prova de solvência) e a contabilização de todos os débitos.

No próximo artigo, trataremos com mais detalhes sobre cada uma delas.

Compra e Venda de Ativos

A outra maneira de repassar o ponto é conhecida por contrato de compra e venda de ativos (ou de fundo de ativos tangíveis).

Teoricamente, esse tipo de contrato serviria para a compra apenas dos bens materiais da empresa, os chamados ativos tangíveis, e não do estabelecimento empresarial (no conceito técnico explicado anteriormente).

No entanto, muito se utiliza essa nomenclatura (compra e venda de ativos) para negociar tanto os bens materiais como os imateriais da empresa – o estabelecimento comercial, que, pela lei, deveria ser vendido por meio de um contrato de trespasse. Essa prática é uma tentativa de evitar os efeitos legais e a burocracia do trespasse, mas, ainda assim, persiste um risco nessa operação, já que, judicialmente, é possível que se reconheça que foi feito um trespasse de maneira irregular, o que teria como consequência justamente o que se pretendia afastar: a responsabilização (ainda mais ampla) do comprador pelas dívidas anteriores.

Esclarecido o risco, vale dizer: por ser o trespasse um contrato pouquíssimo conhecido a fundo, inclusive por advogados, a depender do mercado em que se está inserido (já que é muito pouco utilizado), é muito possível que a alegação de que a compra e venda dos ativos seria um trespasse irregular nunca chegue a ocorrer.

Vantagens

  • O contrato de compra e venda de fundo de ativos tangíveis é muito menos burocrático do que o contrato de trespasse, com a vantagem, ainda, de permitir maior maleabilidade das partes quanto à convenção de responsabilidades.

Desvantagens

  • A grande desvantagem é que essa modalidade pode ser interpretada judicialmente como trespasse dissimulado, disfarçado, e, assim, considerado um trespasse irregular.

    Vale lembrar, no entanto, que esse é um risco minimizado na prática, dada a pouca familiaridade dos credores com a regulação do trespasse.

Há alguns pontos relevantes de se lembrar para a elaboração de um contrato nessa modalidade, que, embora não sejam exigidos por lei, como os do contrato de trespasse, garantem mais segurança às partes envolvidas na operação, como a listagem detalhada dos bens negociados, a situação dos débitos anteriores (conhecidos ou não), a situação da locação do ponto, se for o caso, o quadro de funcionários e cláusulas como a de responsabilização de cada uma das partes e de irrevogabilidade.

Trataremos de todos eles em um artigo específico, em breve.

Conclusão

Como em muitas operações comerciais, o repasse de ponto é um negócio jurídico que admite diversas possibilidades. Caberá às partes decidirem o que melhor cabe a cada operação, considerados os riscos e as circunstâncias concretas.

O contrato de trespasse é muito mais seguro, mas sua alta burocracia o torna muito difícil de se realizar na prática, quando então surge como alternativa plausível o contrato de compra e venda de ativos, cientes as partes dos riscos que o acompanham.

Para outras situações, a compra do CNPJ pode ser viável, caso se trate de uma empresa saudável.

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